Anabela Gonçalves

beneficiária do Centro Porta Amiga do Porto, poetisa e ativista

Qualquer pessoa pode encontrar apoio na AMI, num momento mais frágil da sua vida. Não importa a cor, a religião ou o meio de onde vem. Lamento a atitude de algumas pessoas que observo nas ruas: olham para quem está em situação sem-abrigo ou para quem tem outras dificuldades como se fosse lixo humano. Quem está na rua já teve um passado, talvez melhor que o nosso, só que existiram circunstâncias da vida que as levaram a ficar nessa situação. Não podemos dizer que amanhã não passaremos pelo mesmo.

Eu também já fui sem-abrigo durante um período difícil da minha vida. Perdi a minha mãe ainda criança e, tal como os irmãos, fui institucionalizada. Um dia encontrei uma caixinha com mechas de cabelo enlaçadas do meu irmão que tinha falecido num colégio onde foi institucionalizado, nessa caixa estava escrita uma morada. Fugi para ir até àquela morada, porque pensava que aí encontraria os meus outros irmãos, mas acabei por ficar na rua.

Na rua conheci o pai dos meus filhos. Fomos viver juntos e foi a pior decisão. Passei treze anos a sofrer agressões físicas e psicológicas quando ele chegava a casa alcoolizado. A violência era tão grande que cheguei a ser internada na psiquiatria muitas vezes (só em dois anos tive 11 internamentos), porque não queria viver.

Mas, Deus ou a força em que cada um quiser acreditar, ainda tinha um plano diferente.

Seguiu-se a toxicodependência do meu filho e acabei por também mergulhar no alcoolismo e numa total alienação social. Até que, um dia, enquanto vagueava pela rua, uma vizinha perguntou-me se eu queria começar a ir à casa dela trabalhar. Comecei por fazer pequenas tarefas, até que ganhei capacidade para fazer mais algumas coisas.

O contacto com a AMI, através do Centro porta Amiga do porto, surgiu nesta época de emancipação, há muitos anos, quando me divorciei. Fiz um atendimento social, porque precisava de apoio alimentar e material escolar para os meus filhos e nunca mais deixei de encontrar no Centro Porta Amiga do Porto um lugar seguro, de compreensão.

Como um escape ou um testemunho, a escrita entrou na minha vida desde muito nova. Tinha que exteriorizar o sofrimento que sentia e sempre pensei que alguém se iria rever naquilo que estava a escrever. Escolhi a poesia porque dizem que um poeta ou uma poetisa têm alma de sofredor e têm mesmo.

Escrevi três livros – “Uma vida de lágrimas”, “Dedicatória” e “Entre o amor e a paixão” – todos publicados com ajuda de muitas pessoas que me davam coisas para vender na feira em segunda mão e de instituições dispostas a ajudar a concretizar sonhos.

Para contar e cantar a vida do irmão que perdi, sim, cantar porque também é uma paixão, escolho um poema que era dele:

De calção roto, camisa suja

Olhar maroto e fugindo à rusga

Rouba o que vê

O que sabe tirar.

Ai, não escreve e não lê,

Não sabe chorar.

Miúdo da rua, sem eira nem beira

Com teto de lua, sem cama nem esteira.

Miúdo da rua, nascido do vento,

Verdade tão crua, reduto do tempo.

De olhar traquina, descalço e só

Senta-se à esquina e até mete dó.

Não teve um carinho de um pai de uma mãe,

Ai bebe copos de vinho e sente-se alguém”.

Hoje, mais do que o apoio para questões relacionadas com a saúde e apoio financeiro, procuro na AMI o escape à solidão. Canto no grupo Sons da Rua integrado no projeto Liga para Inclusão Social. É nos ensaios, aqui no Centro Porta Amiga do Porto, que encontro o escape para deixar voar a minha alma e seguir em frente.

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