Já lá vão alguns anos ao serviço da AMI. Ao longo destes anos tive a oportunidade de trabalhar para e com pessoas maravilhosas de diferentes faixas etárias, em diferentes contextos, pelo que me sinto abençoada. Confesso que aprendi sempre mais do que ensinei, até aos dias de hoje. Aprendi a coragem da palavra resiliência, o sentido da fraternidade e a força das palavras certas e do abraço que pode tanto fazer a diferença, sem muitas vezes sabermos quando e quanto.
Entre muitas histórias e desafios volvidos, esta é uma história de vida marcada pela coragem e humildade, que me marcou particularmente, de forma indelével.
Pedro (chamemos-lhe assim) nascido no seio de uma família na Costa do Marfim, cedo conheceu a dureza do trabalho e as agruras da pobreza extrema, da fome, e que ainda assim não lhe retiraram a capacidade de sonhar com uma vida melhor para si e para os seus entes queridos.
Pedro não teve tempo de ser criança, daquelas que podem brincar sem terem de se preocupar com a comida em cima da mesa. Chegado à adolescência, e ainda que a escola estivesse presente, durante 9 anos, não lhe restava tempo para abraçar o livro, chegar a casa e ao menos folheá-lo, não isso, não lhe era permitido, porque o trabalho duro espreitava a cada horário de fecho escolar. Contou-me que ali não havia lugar para sonhar, mas que ainda assim sonhava sempre que se ia deitar, sonhava acordado, com o mar, aquele que um dia o levaria a outros lugares.
Contou-me em desabafo, que eram muitos os dias e noites que sonhava em partir, porque a terra que o viu nascer não lhe era generosa o suficiente para o manter ali, e o peito doía-lhe de se sentir impotente para mudar… As palavras saiam-lhe embargadas e o olhar embaciado denunciava a dor, mas ao mesmo tempo a esperança de uma vida melhor, pois o sorriso acompanhava esta mistura fina de emoções.
Um dia, Pedro e resolveu partir, “fez-se ao mar”, como ele dizia. Deixou para trás a sua aldeia, a sua família e partiu com a roupa no corpo, e os sonhos que o acalentaram durante a viagem dura onde viu e sentiu o sofrimento dantesco, que a maioria de nós não viu e talvez não veja durante a sua vida.
Chegou a Itália, como tantos outros seres humanos, nesta condição imprópria de vida, e aí permaneceu por pouco mais de um ano, com estatuto de refugiado. Trabalhou conforme as oportunidades que foram surgindo, mas Pedro queria mais para a sua vida. Partiu de novo, rumo a Portugal!
Chegou a Portugal cheio de esperança e vontade de vencer. Ao início foi difícil pois não conhecia ninguém nem lugar algum. Permaneceu na rua e conheceu as estrelas como teto, ainda assim os sonhos, esses companheiros de viagem continuavam vivos e deram-lhe força para se aguentar até ao dia em que alguém lhe estendeu uma mão, e foi esse momento de charneira que trouxe luz à sua vida.
Foi acolhido por um parceiro no terreno e posteriormente encaminhado para um equipamento da AMI, lugar onde uma nova fase da sua vida teve início. Mesmo não sabendo a nossa língua, a vontade de aprender era grande, e ao mesmo tempo que pesquisávamos as oportunidades de emprego, em cada atendimento aprendia paulatinamente a nossa língua, o que fez a diferença.
Pedro via agora uma nova oportunidade, pois arranjou trabalho. O seu otimismo e força de vontade depressa conquistaram a empatia dos colegas e aos poucos foi crescendo, ganhando confiança. Regularizou a sua situação e obteve a autorização de residência. Posteriormente fez um curso de português para estrangeiros e um curso de Formação Profissional através do IEFP, – Cozinha, que lhe permitiu encontrar um trabalho na sua especialidade. Nova conquista!
A vida tinha mudado, como ele dizia, podia sorrir mais folgado. Tinha o seu quarto, o seu emprego e os sonhos, esses estavam a desenhar uma nova estrada, incluindo a família, aqueles que quer um dia poder trazer para junto de si.
Perante estes e outros testemunhos, que a AMI em 40 anos já teve a oportunidade de contar ao mundo, porque de Estórias felizes se tratam, pese embora o infortúnio à partida, de tantas narrativas, eu, enquanto pessoa, e profissional, sinto a obrigação para com a minha consciência, de continuar a trilhar um caminho que de alguma forma possa contribuir para um mundo mais humano, ainda que o toque seja uma simples gota de água num vasto oceano.
Maria Fátima P. Guedes