Desde que se lembrava que era sem-abrigo, se bem que em miúdo isso não se chamava assim. Muitas vezes passava a noite nas ruas da cidade. A mãe tinha falecido, era ele uma criança de 5 ou 6 anos, e foi enviado para uma avó. Ele e mais 4 irmãos… A avó tinha alguma dificuldade em tomar conta daquela pequenada toda e ainda mais de ter comida para todos, por isso, vinha das zonas altas do Funchal para o centro da cidade tentar petiscar alguma coisa… Se apanhasse pelo caminho uma fruta, já servia de pequeno-almoço, mas só na cidade conseguia que um comerciante ou outro lhe desse um papo-seco ou alguma coisa que escorregasse das bancas no mercado…
Por vezes, já nem subia para dormir sob o teto da avó. Chão por chão ficava pela baía do Funchal e dormia aqui e ali, por vezes até por baixo dos barcos virados ao contrário. Lembra-se de ter frio e da água lhe chegar aos pés descalços. Foi logo por essas alturas que fumar um cigarro começou a saber a rebeldia e que um copo de vinho sabia a conforto. A vida continuou, cresceu, trabalho e teto estavam certos, mas depois de um casamento onde o álcool tomou um espaço demasiado grande, e conduziu a uma separação difícil, a rua voltou a ser casa. Estava na rua há mais de 3 anos, dizia, quando o encontrei pela primeira vez e começámos a trabalhar na sua ideia de vida. Teria por volta dos 40 e uma vivência de rua muito grande. Apesar das dificuldades, os nossos encontros foram sendo a coisa mais estável que aconteciam na sua vida. Isso, a bebida e o tabaco. Eram conforto. A história seria muito longa porque foram 10 anos de acompanhamento, onde foi importante gostar de tomar banho de novo, organizar os apoios sociais que recebia, fumar menos, beber menos, tratar-se… Foram muitas as dificuldades no
caminho. Até que um dia, este bom rapaz teve uma casa sua de novo, conforto e até uma namorada. Infelizmente, a meia idade trouxe as consequências de uma vida dura. Todos gostamos de finais felizes, mas a vida não julga se é feliz ou não, só é. Faleceu de ataque de coração pouco tempo depois da vida estar estabilizada. Um dia, estava eu com uma barriga grande já de 6 meses de gravidez, disse-me ele: esse miúdo vai nascer no meu dia de anos! (o que via como uma honra). E não é que nasceu mesmo?!… Ainda tenho o riso dele gravado na minha memória… Na maior parte do tempo, era bem-disposto, traquinas e engraçado, como o miúdo de 7 anos que corria as ruas do Funchal…
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Ana (nome fictício) tinha casa, marido e filho pequeno, mas para sustentar tudo isto tinha de vender-se à hora nas ruas. Era o próprio marido que a mandava para a rua quando faltava algo em casa. Ele dizia-se
demasiado doente para trabalhar. Fígado farto de álcool… Por vezes, a urgência de comida em casa fazia com que fizesse “saldos” e vendia o corpo por tuta e meia só para poder levar 2 quilos de massa, um bocado de carne, umas maçãs, para a próxima refeição. Não era velha, nem nova… A vida tinha-lhe dado ar de quem já não sabia a idade que tinha. Mas sabia que não podia continuar naquela vida. Encheu-se de forças e pediu ajuda. Acompanhei-a durante algum tempo num processo de mudança de vida. A certa altura, na procura de emprego deparámo-nos com o problema do seu aspeto físico para trabalhar numa firma de limpeza. Diziam que não a queriam assim. “Assim” era um cabelo branco com restos de louro de há muitos anos, demasiado grande e desgovernado. O cabeleireiro que várias vezes nos oferecia cortes de cabelo no Centro Porta Amiga estava ausente e a Ana tinha mais uma entrevista de emprego no dia seguinte. Ao cabelo juntavam-se as olheiras gigantes e o olhar sem luz. O que fazer?
– “Ana, venha amanhã cedo que vamos resolver a questão”.
No dia seguinte, levei uma toalha, uma tesoura, um pincel e uma tinta de cabelo, coisas oferecidas depois de alguma pedincha aqui e ali. A cabeleireira? Eu. Lavei-lhe os cabelos grandes e secos de tão pouco
cuidados, pintei, cortei em altura e ainda fiz uns jeitos à profissional, nos seus cabelos que lhe emolduram a cara. Enquanto isso, a Ana estava na cadeira como se fosse numa nuvem no céu… “Ana, terminei. Venha ver ao espelho”. A Ana ficou de boca aberta ao ver-se ao espelho. Umas lágrimas caíram-lhe pela cara abaixo – “Isto sou eu? “Estou mais nova, pareço outra!!”. Ficou tão contente que o sorriso apareceu-lhe pela primeira vez em muito tempo. A cara ganhou cor. Lá foi à entrevista, com uma bela roupinha do nosso roupeiro, cabelo brilhante e autoestima levantada. Conseguiu o trabalho. Encontrei-a uns bons meses mais tarde… Segura no seu trabalho, com o qual garantia a sobrevivência do filho e a sua casa. Próximo passo, disse-me, era arranjar uma casinha menos degradada. Depois disso, nunca mais a vi, o que deve significar que está tudo melhor. Lembro-me muitas vezes da Ana com carinho. Porque ela ficou tão contente e porque mudou de vida… Só precisava de um cabelo bem cortado.
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Em 2016, iniciámos uma parceria com o Estabelecimento Prisional do Funchal. Quisemos oferecer os cursos de socorrismo AMI a esta população vulnerável e com grande défice de educação formal e não
formal, mas não sabíamos como seria a aceitação.
Os formandos foram selecionados entre os reclusos que estavam a
acabar as suas penas e que em breve sairiam para a comunidade de novo.
Na verdade, a aceitação não poderia ter sido melhor.
Fizemos questão de fazer uma entrega de diplomas de final de curso, mas não poderíamos adivinhar a importância que teria para o percurso destes primeiros formandos. No dia da entrega, o nervosismo era grande e evidente nos reclusos que ajeitavam a roupa e se colocavam em posição quase militar. Para fazer a entrega, contámos com a presença da direção do Estabelecimento e da nossa Delegação na Madeira, bem como de outros técnicos de educação e do nosso formador.
Um a um, os formandos/reclusos recebiam o seu diploma final, com as notas de avaliação com evidente orgulho e satisfação. Mas um em particular, estava especialmente emocionado.
Referi aos recém-diplomados a importância de poderem salvar uma vida e a responsabilidade que lhes cabia dali em diante. Escutaram-me com muita atenção. Até que o recluso que evidenciava mais emoção pediu a palavra. Tinha cerca 38 anos, alto e forte, com uma expressão de alguém a quem lhe está a acontecer algo muito importante – “Hoje, é um dia muito especial para mim. Pela primeira vez, acreditaram em mim para fazer algo de bom. Este é o primeiro diploma da minha vida e podem acreditar que o recebo com muita responsabilidade e agradecimento. Agradeço muito que acreditem que posso ajudar alguém, e assumo aqui este dever de ajudar, seja um colega de cela, um guarda ou quando sair daqui, alguém na rua”. “Agradeço acreditarem em mim” repetiu duas vezes de forma muito séria, fazendo uma ligeira vénia.
Mais tarde, soubemos pelos técnicos de educação do estabelecimento que a maior parte dos reclusos pediu para que o diploma fosse encadernado e bem guardado, bem como referido nos seus currículos agora que estavam quase de saída para a vida em sociedade.
Para além da falta de formação, os reclusos do nosso país, têm ainda muito baixa escolaridade e quase nenhuma educação cívica. Este pequeno grande curso de Socorrismo forneceu um pouco de tudo isto e sobretudo uma valorização das pessoas e das suas capacidades. Para sermos maiores, temos que acreditar que o podemos ser. E por vezes, só precisamos que alguém também acredite.
Helena Andrade, Delegada da AMI na Madeira