Que fazer de um momento que nos rasgou qualquer coisa cá dentro? Se o calares, ficará a vaguear dentro de ti e questionarás se tens o direito de silenciares algo assim, que viste, que sentiste. Se o contares demasiadas vezes, temes que acabes por o banalizar, por haver um momento que “soe” apenas a mais uma história das que contas. E não, não é.
Já passaram dez anos. Já o escrevi. Já o contei umas vezes. Temo o dia em que o narre e perceba que quem ouve ou não se interessa ou talvez não acredite. E aí, sentir-me-ei uma fraude e imerecedor de ter estado no Níger naquela primavera de 2014, naquela que foi a primeira viagem que eu e o fotógrafo Alfredo Cunha fizemos com o Dr. Fernando Nobre para o livro dos 30 anos da AMI, “Toda a Esperança do Mundo”. Levou-nos a mergulhar nas tragédias da Humanidade: da guerra à fome, da doença aos cataclismos naturais.
Estávamos no Níger por causa da questão da escravatura. Mais de um terço da população deste país, composto de dois terços de areia do deserto e com 20 milhões de habitantes, ainda era escrava. A frase dita assim é o que é.
Fomos até Gurti Korà, uma aldeia a duas horas da capital, no meio do deserto, que supostamente, com apoio de uma ONG, já não era uma “aldeia escrava”. Já não pertencia à aldeia de cima. Tinham sido propriedade desta há gerações. Assim como os bois que se viam por ali a deambular. Para a aldeia de cima era incompreensível que alguém tivesse decidido roubar-lhes algo sem nada em troca. Mas a história de “libertar” não tinha funcionado. Numa noite, taparam todos os poços de água da aldeia de baixo. Agora, estes tinham de pedir água aos antigos senhores. Queriam voltar para o “antes”. Desde a ideia de “libertação”, a aldeia de cima só lhes tinha dado guerra. Queriam, pois, voltar a ser escravos. Homens enormes, maiores do que eu, olhavam-me submissamente de baixo para cima, como se tivessem nascido quebrados.
Dei uma volta pela aldeia. A informação anotava-a. Não conseguia processar. Dei com uma escolinha e entrei. Era das únicas casas de tijolo. Crianças lindas aprendiam o francês. Havia um quadro e tudo. Um menino foi ler. Tentei falar com elas, mas não houve grande interação. Ajoelhei-me e olhei, deslumbrado, para a beleza daquelas crianças, mas havia uma parte do meu cérebro que repetia: são escravas. Mas não processava.
Assisti um pouco à aula, mas percebi que havia ali uma tensão qualquer e que as crianças estavam “acanhadas”. Lá fora, debaixo da árvore, a discussão continuava acesa. Fomos embora. Algo em mim tinha mudado e ainda não sabia.
Nessa noite, ainda vi as fotos da escolinha. E mostrei-as a um francês – dos serviços secretos.
“Já reparaste como elas estão a tapar os seios com medo de que as vás levar? Que as vás levar.”
Não, não tinha reparado. Eram meninas de 10, 11 anos. Anotei-o nos apontamentos.
O primeiro texto sobre este tema saiu num jornal umas semanas depois. Só nesse dia consegui chorar compulsivamente.