Fui convidado a partilhar uma história que me tivesse marcado ao longo destes anos na Fundação AMI. A verdade é que foram muitos os casos que já acompanhei, mas alguns não esquecerei e desses, escolhi falar de uma situação que conheci em 2004, eram os primórdios da equipa de rua da AMI de Lisboa.
Numa das rotas da equipa, um dia abordámos o Joaquim (nome fictício), com 57 anos. Disse-nos que era natural do distrito de Aveiro e que estava a dormir na rua há 10 anos. Contou-nos ainda que já tinha trabalhado na construção civil como dourador e que estava indocumentado. Na semana seguinte voltámos a contactá-lo e propusemos ajudá-lo na obtenção do bilhete de identidade, o que aceitou de imediato. Como o Joaquim tinha consumos de álcool, concordou em fazer um tratamento de desabituação do álcool em regime de internamento com a duração de 4 semanas no Centro Regional de Alcoologia do Sul (CRAS), sendo que iria depois para uma Quinta Terapêutica da Comunidade Vida e Paz.
Para tratar do bilhete de identidade solicitámos-lhe alguns dados de identificação para pedir a certidão de nascimento à Conservatória do Registo Civil, depois de recebermos a certidão fomos com o Joaquim tirar fotografias e tratar da obtenção do Bilhete de identidade. Para iniciar o processo do tratamento de alcoolismo fomos a uma consulta no Centro de Saúde e foram-lhe prescritos os exames, depois fomos com ele fazer as análises clínicas e os exames pneumológicos. No início de 2005, o Joaquim teve uma consulta no CRAS, na qual foram solicitados mais alguns exames médicos pelo que a equipa voltou a acompanhá-lo para realização dos mesmos, seguiu-se mais uma consulta no CRAS para o médico avaliar os resultados dos exames, ficando depois em lista de espera a aguardar entrada para tratamento.
Ao longo do tempo, a Equipa de Rua da AMI foi estabelecendo uma relação de confiança com o Joaquim. Contou-nos que foi paraquedista, tinha filhos, irmãs e irmãos, mas não se recordava dos nomes de ninguém, mostrou-nos o carro que lhe emprestaram para guardar as suas coisas e onde por vezes dormia e referiu que ganhava dinheiro a vender ferro velho.
Finalmente, fomos informados do dia e hora do internamento, recordo-me de nesse dia de manhã acompanhar o Joaquim ao CRAS, e à tarde levar-lhe produtos de higiene e roupa. Durante o período de internamento, a Equipa de Rua foi visitar o Joaquim e esteve sempre em articulação com o Assistente Social do serviço de internamento que nos comunicou que nas primeiras semanas o Joaquim teve algumas dificuldades de integração relacionadas com a postura e linguagem desadequadas, mas que nas últimas semanas de tratamento já estava melhor em termos de colaboração nas tarefas e educação e comportamento. A nível físico também estava diferente, tinha o cabelo cortado e a barba feita e já se recordava dos nomes dos familiares e onde viviam. Numa das visitas que fizemos disse-nos: “Não quero beber mais álcool, só água”.
Após ter concluído o programa terapêutico no CRAS, o Joaquim foi para o Centro Quinta do Espírito Santo da Comunidade Vida e Paz. Após três meses de entrada na Comunidade, fomos visitá-lo à quinta, e o Joaquim ficou surpreendido. Disse que já tinha pensado em nós e que já tinha saudades. Contou que agora aquela era a casa dele, que se sentia ali muito bem e que a comida era boa. Foi-nos mostrar a oficina de olaria onde tem trabalhado a fazer cinzeiros, dizendo que ia fazer um cinzeiro para oferecer a cada um de nós no Natal.
Depois da visita, mantivemos o contacto com os conselheiros da comunidade nos anos seguintes, para saber notícias do Joaquim.
Em 2006, relataram-nos que o Joaquim tinha tido algumas dificuldades de integração com hábitos e comportamentos antissociais devido ao facto de ter vivido muitos anos na rua (não cuidar da sua higiene, apanhar beatas do chão) mas que agora essas atitudes eram praticamente inexistentes com uma boa integração no grupo e com um comportamento educado e participativo em todas as atividades solicitadas.
Em 2008, voltámos a contactar a comunidade, soubemos que o Joaquim ainda estava na Quinta do Espírito Santo e que apesar de já estar um pouco debilitado e com alguns problemas de saúde mantinha-se interessado nas atividades e sempre muito educado. Foi esta a última vez que tivemos notícias do Joaquim, sentimos que todo este trabalho foi demorado, mas muito gratificante, e que originou resultados que tiveram impacto com mudanças significativas na vida de uma pessoa.